“ Dedurar” era um neologismo abjeto relacionado com as lutas pela liberdade no período da ditadura, e que terminava por levar o dedurado à prisão, à tortura e até à morte. O “ dedo- duro” ganhava alguns privilégios, e não poucos chegaram mesmo a tornarem-se informantes remunerados da polícia. Daí a rejeição moral e política quase consensual à prática, desenvolvida sob o manto da violência nos porões da repressão.
Há quem, por conveniência própria, tente confundir a “ deduragem” com a delação. Esta tem relação com a criminalidade explicita e é regulamentada pela Lei no 12.850, de 2 de agosto de 2013.No caso da presidente Dilma, quando declarou “Não gosto de delatores”, ela se referia possivelmente à “deduragem” ( entre companheiros de militância armada), o que se situa apenas no campo semântico e cultural da delação, mas sem o mesmo significado explícito.
Se a intenção da Presidente foi usar mesmo a palavra ”delação” no seu sentido legal, ela passou muito perto de ter seu nome arrolado no que a lei 12.850 chama de “organização criminosa”. Na dúvida, poder-se-ia inferir que ela teria, no mínimo, enviado um recado ao candidato à delator em depoimento na CPI da Câmara que viria a seguir, Marcelo Odebrecht. Ele silenciou-se, de fato, repetindo apenas , como um papagaio, que não tinha simpatia pela delação.
O indício de ter sido uma advertência, quase uma ameaça, para um acusado que, sabidamente, tem a chave dessa trama toda, respinga no acordo de leniência de uma ação penal (artigo 35-B da Lei 8.884/94, acrescentado pela Lei 10.149/00), cuja celebração, passou a ser permitido, a partir da Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE) - que atua em nome da União - a pessoas físicas ou jurídicas autoras de atos lesivos a ordem econômica. O acordo gera para o acusado a prerrogativa de colaborar nas investigações, apresentando provas inéditas e suficientes para a condenação dos demais envolvidos na suposta infração.
Funcionaria como uma penitência no campo religioso. Em contrapartida, os acusados, no caso da Lava-Jato, beneficiam-se com a extinção da ação punitiva da administração pública, ou redução da pena em 1/3 a 2/3, com o aval do Ministério Público . Curioso é que esse tipo de acordo baseia-se na chamada Lei Sherman, de1890, e depois em 1993 – lei da concorrência- , nos Estados Unidos, e que proibia qualquer restrição ao comércio americano e funcionava permitindo ao infrator recompor a estrutura da empresa investigada, possibiitando-lhe ainda a recuperação do próprio capital , embora a procedência de sua aplicação envolvesse cartéis em inúmeros setores da economia. O modelo reflete a natureza malvada do capitalismo. O uso desse expediente estendeu-se por vários países europeus, até o Brasil também admiti-la.
Por isso, no caso da Operação Lava-Jato, a delação premiada não tem o sentido paradoxal político que Marcelo tentou agregar como um valor moral, rejeitando gloriosamente até o beneplácito de uma pena mais leve. Para ele, na sua desonra, a honradez seria rejeitar publicamente a delação. Não foi o caso da maioria dos seus companheiros, que assumiram a desonra, com o ônus que ela carrega, e, reconhecendo o erro, devolveram dinheiro, e indicaram entre si os que praticaram os mesmos atos fraudulentos, não se mantendo omissos diante do prejuízo coletivo, como que a proteger a terceiros. Marcelo, Renato Duque, João Vacari, Delcídio Amaral, José Dirceu silenciaram-se unanimemente passando mesmo a idéia de uma conivência, de uma grande “famiglia”, com reflexos, inclusive, entre parentes mais chegados.
Ora, enquanto os demais são execrados pela exposição pública, beneficiando-se apenas da delação na redução da pena e no seu modo de cumpri-la, o presidente do grupo Odebrecht, monasticamente, parece esperar dar a volta por cima num acordo de leniência, introduzido recentemente pela atual Presidente da República, o que – deve imaginar - o aliviaria moral da culpa pelas práticas transgressoras contra a coletividade. Isso o permitiria recuperar a empresa e parcela significativa do capital que vazou, usando as mesmas prerrogativas de prestador de serviço ao Estado. Com isso, os ministros do Tribunal de Contas da União, que tanto têm insistido em coibir as falcatruas com dinheiro publico, ficariam literalmente “chupando o dedo”. Se ainda vivo, o esperto José Maria Alkmim, lançaria sua grande convocação: Locupletemo-nos todos,já que é impossível restaurar a moralidade!
*Jornalista, professor. Doutor em História Cultural