*Por Luiz Fernando Casagrande Pereira
Quando se fala em reforma político-eleitoral, há uma crença — uma crendice popular, eu diria — segundo a qual todos os problemas poderiam ser resolvidos se houvesse boa vontade em eliminar as imperfeições do sistema político-eleitoral. Na interminável busca pela democracia perfeita, há sempre uma esperança na reforma redentora, em um passe de mágica. Um inimigo oculto sempre estaria a impedir os avanços.
A incompreensão em torno da inafastável imperfeição da democracia é fonte permanente de frustração e tensão. A democracia não se pretende perfeita. Essa é ambição das aristocracias e das teocracias, com o domínio exercido por homens excepcionalmente qualificados ou ungidos por Deus. A democracia é imperfeita. E é imperfeita porque "sustenta humildemente o seu funcionamento na mediocridade do ser humano, ou seja, no eleitor comum" (Néviton Guedes, citando Ulrich Preuβ).
É por isso que o professor Clèmerson Clève ressalta que as reformas políticas são sempre incrementais; nunca redentoras. Essa crendice (ou essa incompreensão) não é só nossa, é universal.
A Universidade de Cambridge pesquisa há 25 anos a satisfação global com a democracia, em 154 países. O último relatório, de 2020, mostrou aumento do grau de insatisfação. Em poucos países o índice de satisfação é superior ao índice de insatisfação. E com isso aumentam as apostas na reforma redentora.
Não há passe de mágica, é preciso insistir. Como já disse o ministro Barroso: "Essa ideia de que nós vamos refundar tudo, de uma vez por todas, e de que a partir disso, no dia seguinte, nós alcançamos o paraíso, não existe". Importante sempre partir dessa premissa. Com isso, baixamos expectativas em torno da reforma (de qualquer reforma). E baixar expectativas, diminui o nível de frustração.
Quero tratar da reforma da legislação eleitoral, mas faço, antes, breves referências à reforma política.
A Constituição brasileira de 1988 criou um modelo político. Os elementos essências de um modelo político constitucional, no mundo inteiro, estão representados no sistema de governo (presidencialismo e parlamentarismo) e na opção entre sistemas eleitorais.
O sistema de governo foi resolvido e depois ratificado no plebiscito determinado pelo artigo 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988. A República presidencialista recebeu folgada maioria.
A Constituição escolheu um sistema eleitoral. Para falar apenas do essencial, é um sistema eleitoral proporcional de lista aberta, agora sem coligação na proporcional. E um sistema partidário recentemente bem calibrado com a cláusula de desempenho. Dois avanços muito importantes da Emenda Constitucional nº 97, de 2017. Importantes avanços incrementais.
Também houve avanços no financiamento. Não temos um modelo ideal – até porque não existe um modelo ideal —, mas incrementamos o modelo com o fim do financiamento de pessoa jurídica sem limite nominal. Em 2014, a JBS, sozinha, doou 360 milhões de reais. Financiou mais de cem deputados federais; número parecido de deputados contou com o Bradesco. Havia um congresso capturado. Temos que melhorar. Sem dúvida. Os alemães alteram sistematicamente o sistema de financiamento. Falam em "legislação interminável" para tratar do tema.
Toda legislação eleitoral, a rigor, é interminável. Estamos sempre atrás de um modelo melhor, mas nunca podemos deixar de reconhecer que não se deve esperar mais dos sistemas eleitorais do que são capazes de entregar.
Por outro lado, é importante compreender que aqui no Brasil vivemos "tempos ásperos", para usar o título do último livro de Vargas Llosa que trata da fragilidade histórica das democracias latino-americanas. Em tempos ásperos nossa maior missão deve ser resistir. "Democracia é uma conquista que não pode ser jogada fora", nos lembrou o ministro Fachin em artigo recentemente publicado aqui na ConJur.
Antes de reformar, manter o que temos — é o prudente recado.
Estabelecidas as premissas, falo agora da reforma eleitoral. Posso dizer, sem receio, que vivemos o momento de maior ebulição em termos de reforma das normas eleitorais. Há uma feliz coincidência em movimentos não combinados, mas coordenados, entre o Tribunal Superior Eleitoral e o Congresso.
O movimento do TSE começou em 2019, com a criação do Grupo de Trabalho para Sistematização das Normas Eleitorais, coordenado pelo Ministro Fachin. Agora o SNE está na segunda fase, preparando uma nova entrega. Há mais de cem pesquisadores envolvidos, inclusive com gente de fora do direito.
Vale muito a pena ler o material que está saindo do SNE. A preocupação com o financiamento das candidaturas negras, para consolidar o avanço que se deu por decisão judicial. A discussão em torno das candidaturas coletivas. A facilitação das candidaturas de indígenas. Na esfera penal, a preocupação com a violência política contra grupos vulneráveis. Matérias que podem ser acolhidas pela reforma da legislação eleitoral.
Além disso, há uma enorme preocupação com a ampliação do direito de voto e de ser votado. Aqui é importante registrar o grupo criado pelo ministro Barroso, com ênfase na ampliação da cidadania. Quilombolas, indígenas, ribeirinhos e moradores de rua estão no centro da preocupação do TSE. Há especial atenção ao voto dos presos provisórios e, pela primeira vez de forma consiste, com menores internados.
Em sentido contrário, o mundo acompanha assustado o movimento dos republicanos nos Estados Unidos em restringir o direito de voto em alguns estados, como na Georgia, no Texas e na Flórida. Como já está claro, os afrodescendentes são as principais vítimas dos inconformados com a 15ª Emenda — que garantiu o direito de voto aos negros há 150 anos.
Feliz coincidência, toda essa ebulição do TSE coincide com a discussão de um novo Código Eleitoral no Congresso Nacional. A Deputada Margarete Coelho, com sólida formação acadêmica na área, coordena grupos com entidades como a nossa Abradep, com mais de cem pesquisadores envolvidos. Há fluxo contínuo de ideias, vindas do TSE e dos grupos ligados à reforma eleitoral no Congresso. Uma ebulição que pode autorizar a maior e melhor reforma da legislação eleitoral desde o Código de 1932.
Antes de tudo, a tarefa é sistematizar. Sistematizar é fundamental para afastar disfuncionalidades e garantir mais segurança jurídica. Depois de sistematizar, é necessário avançar em alguns pontos.
O primeiro e mais necessário avanço está no salto quantitativo na representatividade de gênero. Além do concerto sistêmico, será possível avançar em temas importantes. É escandalosa a sub-representação feminina no parlamento. É necessário reservar vagas, sem retrocessos na cota de candidaturas.
Na propaganda, a verdade é que o Brasil tem o sistema mais regulado de campanha eleitoral do mundo. É algo esquizofrênico. Definir o tamanho de adesivo para bicicleta, para citar um exemplo exótico da Lei Eleitoral, é uma vergonha. Temos que higienizar e desidratar a disciplina da propaganda eleitoral, dando mais espaço para os candidatos. Há bons estudos mostrando déficit de informação do eleitor em razão da hiperregulamentação.
No tema do financiamento, a decisão do STF de barrar indiscriminadamente as doações de pessoas jurídicas, merece "revisão". O sistema anterior também não funciona, como destaquei no início. Temos que achar um meio termo aí, conciliando financiamento pelas empresas, com limites rígidos de tetos nominais.
Um olho nos avanços, outro no risco de retrocessos, como o voto impresso. Organizamos as melhores e mais seguras (e auditáveis) eleições do mundo. Só não reconhece isso quem tem fetichismo do estrangeiro, na expressão de José de Alencar.
E volto, agora no final, a concordar com o Ministro Fachin: em tempos ásperos, mais importante do que avançar, é resistir. E vivemos sim tempos ásperos. O Brasil é o quarto país que mais se afastou da democracia em 2020, em um ranking de 202 países analisados. A conclusão é do relatório Variações da Democracia (V-Dem), do instituto de mesmo nome ligado à Universidade de Gotemburgo, na Suécia.
Vamos avançar, se pudermos. E acho que podemos. Agora, o mais importante é mesmo resistir.
*Luiz Fernando Casagrande Pereira é Doutor em Direito pela UFPR, advogado e coordenador geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).
Texto publicado na Revista Consultor Jurídico, 14/06/2021
Comentário de leitor
Afonso de Souza (Outros)
15 de junho de 2021, 10h29
O voto impresso (mantendo a urna eletrônica) é o modelo adotado em praticamente todas as democracias do mundo.
Reserva de vagas (cadeiras) no Legislativo para grupos específicos (ex: mulheres) contraria o princípio de que todos os votos valem o mesmo. Essa reserva deve valer apenas para as candidaturas. Cabe ao eleitor/a decidir quem o/a representará.