A hipocrisia crônica nacional perpetua, por décadas ou gerações, o voto em quem “rouba, mas faz” e “rouba, mas é bom político”.
Por Jornal GGN O jornal de todos os Brasis -17 de agosto de 2021
*Por Aracy P. S. Balbani
Muita gente se ilude com a retomada de um novo normal no Brasil. É pura tapeação, não apenas porque a pandemia ainda não acabou e os índices da economia patinam. É, sobretudo, porque o ranço colonial escravocrata que desaguou no fascismo atual criou uma sociedade anômala.
Nossa esquizofrenia social convive com números estarrecedores de óbitos por doenças evitáveis e violência. Encarna com toda a convicção o lema “Quando a farinha é pouca, meu pirão primeiro”. Se adoecimento, fome e morte são mais frequentes entre favelados, negros e dependentes químicos sem-teto solta-se um “E daí?” e se pretende dar o assunto por encerrado.
A hipocrisia crônica nacional perpetua, por décadas ou gerações, o voto em quem “rouba, mas faz” e “rouba, mas é bom político”. Gentilmente, pede desculpas pelo atraso do filho à aula de catecismo, mas justifica: antes teve de levar o irmão colecionador de armas até o clube de tiro que a família frequenta. Se diz liberal, mas dissemina fofocas da pior baixaria sobre a mulher solteira bem-sucedida na profissão e independente financeiramente. Ao mesmo tempo, olha de soslaio a mulher casada que opta por não trabalhar, criticando-a por viver do dinheiro que o marido ganha. Vai além: quase toda mulher vítima de violência é massacrada como culpada até que haja prova, ainda que póstuma, em contrário.
Nossa tacanha casa grande produz fascistas de nível superior, inclusive da área da saúde, que estudaram em universidade pública e agora propõem, às escâncaras, retirar o direito a voto de quem não tem diploma universitário.
Nossa casa grande jeca baba ovos para poderosos falidos, aqueles sujeitos que rebolam entre negociatas, politicagem e agiotas para conseguirem pagar o financiamento de seus bens, os salários de empregados – os que são registrados em carteira, evidentemente – e o aluguel de suas vivendas cenográficas, onde comem comércio informal entre vizinhos e arrotam empreendedorismo descolado. Dependendo do rebolado, não é de duvidar que muitos formadores da opinião do quarteirão uma hora mostrem a anágua e acabem no xilindró.
Nossa casa grande abarrotada de zelotes requer que a gente da senzala se esgoele para conseguir um recibo de prestação de serviço ou um cupom fiscal de mercadoria em muitos estabelecimentos. Fica-se com a impressão de que emitir comprovante fiscal e pagar impostos provoca crises de alergia terríveis em vários profissionais de todos os ramos.
Nossa casa grande perversa fala tatibitate em democracia pela frente, mas ventila despudoradamente pelos fundos que o bom cabrito não berra. Todos pelo silêncio. O abafa acima de tudo. Cabrito bem adestrado pelos capatazes e jagunços das capitanias hereditárias da era do smartphone só tem direito ou a dizer “Sim, sinhô” ou a morrer, se não por doença, por suicídio provocado pela truculência de agentes do Estado ou queima de arquivo mesmo.
Em resumo, é como já se escreveu num livro: parte da sociedade vegeta desde sempre na troca de mentiras e indecências e se deixa seduzir pela hipocrisia. Aos conformados com os velhos e populares demagogil e hipocrisil, pagando bem, que mal têm os efeitos colaterais de ivermectina e cloroquina indicadas por charlatões?
Mas o que é fascista se desmancha em fumaça fedorenta numa tanqueciata de guerra bancada por dinheiro público no planalto central num agosto cinzento. A opressão, a hipocrisia e a mentira não hão de vencer.
*Aracy P. S. Balbani é médica.
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