Desde que me conheço por brasileiro, a história é sempre a mesma: quando chega a hora de distribuir melhor a renda e diminuir as aberrações sociais, inventa-se uma crise. Motivos não faltam: pode ser o petróleo, a queda da bolsa na Rússia, as sabotagens, o rombo das contas públicas, a pressão cambial, o descaso pelas causas coletivas ou a corrupção bilionária já tradicional na política brasileira. A razão, porém é sempre a mesma: para que os ricos continuem ricos, é preciso que pobres fiquem mais pobres e a classe média abra mão de mais alguns objetos do desejo. Aumentam-se os impostos, pioram-se os serviços e mantêm-se intactas as prevaricações e os desvios institucionalizados. A classe média, aliás, tenta a todo custo afastar o fantasma do rebaixamento, mas as ameaças aterradoras e ininterruptas da desempregabilidade não a deixam dormir sossegada. Ao mesmo tempo, as delações generalizadas e o modus operandi de nossas classes dirigentes nos deixam a incômoda impressão de que eles não deixam escapar quaisquer chances de se manterem mais ricos e poderosos, mesmo que seja às custas da miséria de milhares.
Nossa economia virou uma espécie de “Ópera do Ajuste” que depois do ápice real desvia o seu curso em direção ao iceberg do desemprego e da recessão. Com isso, a bolsa da maioria da população teve uma queda vertiginosa, apesar da equipe econômica do governo ter usado toda sua sabedoria para defender o real dos ataques especulativos e do nervosismo do mercado, que ameaçam dizimar nossas reservas cambiais, e ter saneado e desinfetado nosso sistema financeiro para que o país não fique à mercê do homo speculator, espécime em franca proliferação.
Ah, e os desvios?? E as contas na Suíça?? Se os telefones falassem! Esta talvez seja a maior de todas as nossas novelas! Mas de qualquer modo, vimos a versão dada pela TV e pelas revistas semanais, cada vez mais acintosamente tendenciosas e deformadoras da realidade, e nos escandalizamos ainda mais. Seria preciso o empenho integrado de todos, uma trégua de todas as quadrilhas organizadas por pelo menos um ano, a fim de alcançarmos resultados satisfatórios a curto prazo, neste processo de busca da identidade nacional e do passaporte para o primeiro mundo globalizado. Os corruptos, contudo, continuam firmes e intocáveis, dizendo bazófias no Congresso, no Judiciário e em todas as partes, defendendo hipocritamente seus próprios interesses, e impedindo que todo o nosso dinheiro caia em mãos estrangeiras!
Os meios de comunicação hegemônicos, por sua vez, forjam um cenário de trevas, de escassez absoluta e de ameaça de perda dos direitos básicos, além de enfatizar a todo momento, como disse certa ocasião Hermann Hesse, “a cômoda recusa a todo problema profundo, a renúncia covarde e orgulhosa a todo questionamento realmente importante, a fruição pura e simples dos prazeres momentâneos”. Um estilo de vida americanizado, obviamente tolo, intoxicando a todos e fazendo com que ninguém se aprofunde em qualquer coisa realmente séria.
E o dinheiro, onde está? Quem ganha com a alta do dólar? Esta pergunta há séculos aflige a milhões de brasileiros ignorantes da real situação econômica dos agentes financeiros que controlam nosso país. A resposta é simples: basta equacionar as variáveis das mudanças cambiais e observar os fluxos flutuantes do capital sazonal absorvido temporariamente pelo mercado, computando sempre as perdas registradas no período e evitando o efeito dominó que teima em acompanhar a retração cambial. Ora, é tudo tão óbvio! Contudo, o salário mínimo continua sendo minimamente básico e as classes abastadas se posicionam veementemente contra a bolsa família. O trabalho honesto em nosso país infelizmente continua sendo um mau negócio e a vigarice vai de vento em popa: da desfaçatez de nossos congressistas ao cinismo torpe de muitos juízes; do roubo de cargas ao desvio de verbas; do tráfico de influências às comissões para as liberações; do comércio ilegal de drogas às falsificações generalizadas; da esperteza intermediária a sem-vergonhice sorridente; nestas áreas os lucros elevados apontam para um crescimento constante e gananciosamente abusivo, encabeçado há muito pelos bancos.
Às vezes não sabemos exatamente se estamos entre os achados ou entre os perdidos, mas talvez resida aí uma das características mais marcantes de nossa realidade: os contrastes extremos, quase excludentes, os discursos verborrágicos e hipocritamente sinceros em meio a mais absoluta vigarice, e as combinações surrealistas que nos fazem sentir muitas vezes num pesadelo kafkiano ou num sonho do país das maravilhas; é o tão falado efeito gangorra que nos joga da euforia ao desespero, da tragédia mais calhorda à explosão máxima de alegria telefabricada.
E se tivéssemos uma classe dirigente realmente interessada em buscar saídas imediatas para nossas questões sociais mais graves, composta em sua maioria - pasmem - por pessoas íntegras e honestas? Como seria? Pois, enquanto não cultivarmos valores que norteiem claramente nossas atitudes, não há Reforma que dê jeito nas anomalias grotescas de nossa organização social que já passou dos 500 anos. Neste contexto, reduzir a distância entre o que se diz e o que se faz, entre o que se pensa e o que se expressa, passam a ser as principais exigências e os principais alimentos de um futuro mais saudável e mais humano. Será que estamos no caminho certo?