Por: Mario Sabino
Em 1990, eu passei por uma experiência curiosa e esclarecedora: editei a revista Teoria & Debate, do PT. Tinha 28 anos, estava desempregado e um amigo me convidou para esse trabalho. Eles não precisavam de um petista – jamais fui simpatizante do partido ou filiado –, mas de um jornalista que soubesse editar. Recém-casado, durango, aceitei o convite.
Eu era um estranho no ninho, mas fui bem recebido. Tanto que continuei a editar a Teoria & Debate, na condição de freelancer, por mais algum tempo, mesmo depois de empregado na Istoé.
Eu lia aqueles artigos extensos, escritos numa língua próxima ao português, e procurava lhes dar alguma sintaxe na sua falta de sentido intrínseco e extrínseco. Eu dizia que não era possível que eles ainda acreditassem em "luta de classes" e minhas observações eram ouvidas com sorrisos condescendentes. Eu fazia piadas sobre a "redenção da classe operária" e eles riam. Eu colocava poesias de grandes autores na quarta capa e eles aceitavam.
Eles, no caso, eram o baixo clero da máquina do partido com quem eu lidava no cotidiano. Meu contato com o alto clero – os intelectuais petistas, integrantes do conselho editorial da revista – era esporádico. Vez por outra, havia uma reunião para definir a pauta e o meu papel era escutar calado o que discutiam.
Lembro que uma questão aparentemente não superada pelo PT naquele momento era se a democracia era um "valor estratégico" ou um "valor universal". Traduzindo: se aceitar as regras democráticas consistia apenas numa forma para chegar ao poder – e, em seguida, implodir a coisa toda, a fim de instituir a "ditadura do proletariado" –, ou se era possível revolucionar a sociedade dentro da moldura estabelecida institucionalmente pela "burguesia". O contexto mundial era o da recente queda do Muro de Berlim e o esfacelamento do que os petistas chamavam de "socialismo real" no Leste Europeu (uma distopia que queriam fazer renascer como utopia).
Passados quase trinta anos, constato que, para o PT, a democracia sempre foi um valor monetário.
Uma vez no poder, o PT tentou apodrecer a democracia para enriquecer ilicitamente a casta dirigente do partido.
Uma vez no poder, o PT tentou putrefazer a democracia para desgovernar o país por meio da compra de aliados circunstanciais.
Uma vez no poder, o PT tentou ulcerar a democracia para conquistar votos através da distribuição de migalhas a pobres desassistidos eternizados como pobres assistidos.
Em resumo, o PT raspou os bigodes stalinista e trotskista para tascar um bigodão sarneyzista no seu discurso socialista.
(*)Mario Sabino é um jornalista e escritor brasileiro. Foi redator-chefe da revista Veja até o final de 2011.
Foto de Mário Sabino – divulgação.