Imaginemos a seguinte sequência de um filme de sucesso de 1942, dirigido por Jack Kinney. O personagem se exercita em seu apartamento, mas, atrapalhado que era, sofre um acidente e voa janela afora, caindo de uma altura estonteante, soltando um grito angustiado de pavor. A plateia ri!
O personagem sai vivo, apesar do prédio ser talvez mais alto que o Empire StatesBuilding! Mas ele sai vivo e volta a se atrapalhar. Isso nos leva a três questões sobre o absurdo dessa passagem:
1) Onde encontraram um edifício tão alto assim?
2) Como ele escapou vivo?
3) E, mais absurdo ainda, pois não foi do filme, mas da realidade, por que todos riram?
Os cinéfilos entendidos já devem ter percebido que filme seria esse e não se envergonhariam em assumir que também riram da situação. O filme? “Pateta nas Olimpíadas”.
Os filmes infantis exageram nas passagens, brincam com o medo das pessoas e faz rir muita gente com sua violência gratuita, mas extrema. Não raramente, os personagens levam tiros na cara, sofrem com explosões destruidoras, são soterrados, atropelados, esquartejados, esmagados e... saem vivos! E isso tudo são filmes infantis que deixam um recado claro, embora muito duvidoso: a criança sente repulsa à morte, mas não à violência, principalmente se essa vir acompanhada com uma trilha sonora alegremente adequada.
Existem violências piores. Dramas sociais fortes são atenuados nos filmes infantis em outro recado que diz que existe, sim, um lado mais triste da vida. O personagem o supera e sai vencedor, amostrando mais uma mensagem: enfrente que sairá vencedor. Não foi assim em Cinderela ou em “O Corcunda de Notre-Dame”?
Fazer um filme infantil é muito mais complicado que fazer para adultos. E o reconhecimento, infelizmente, é o oposto. Quando “A Bela e a Fera” foi indicado ao Oscar de Melhor Filme em 1992, houve quem reclamasse sobre o quanto seria inapropriado uma animação concorrer a esse prêmio. Levou, no final, o de Melhor Trilha Sonora e o de Melhor Canção Original. Se recebesse o de Melhor Filme, haveria protesto dentro da crença de que filmes infantis, principalmente animações, são de uma categoria inferior. Quanto engano!
O bom filme infantil, na verdade, deve agradar as pessoas de todas as idades. Isso, já era de antanho, quando as matinês dominicais enchiam os cinemas com uma molecada terrível que ia assistir os festivais Tom & Jerry ou Pernalonga.
Quanto aos filmes de Tom & Jerry, com violentos e cômicos combates entre um gato e um rato, invertendo os papéis de mocinho e bandido em relação à vida real, sob as geniais direções dos criadores William Hanna e Joseph Barbera, já foi observado um grupo de senhores convidando a uma criança de rua a assistir o filme com eles. A explicação foi que o cinema não admitia a entrada de adultos, senão acompanhando crianças. Eles, então, usaram esse artifício!
Nos dias de hoje, ainda vemos uma quantidade grande de miúdos assistindo filmes destinados a eles, mas sempre com a presença dos pais, avós ou tios. Nunca sozinhos. Portanto, se não agradar aos adultos, os pequenos não vão.
Essa exigência de mercado complica a coisa. Os gostos, as percepções e as expectativas são diferentes para cada faixa etária. Crianças, adolescentes, jovens e adultos têm, cada um, seu universo próprio de percepção, e achar um ponto em comum muitas vezes é uma tarefa impossível!
O que resta então é trabalhar com as percepções diferenciadas. A mesma história passada para um adulto e para uma criança é percebida de maneiras diferentes. Enquanto em “O Rei Leão” as crianças se divertem com as vozes de Bruno Miguel e Pádua Moreira cantando “O que eu quero mais é ser Rei” (no original, Jason Weaver e Rowan Atkinson – o Mr. Bean – em “I justcan’twaittobe King”), os adultos também se divertem mas conseguem enxergar o perigo da educação de uma criança socialmente elevada e mimada. A voz engraçada do saudoso Ivon Cury no papel de Lumière em “A Bela e a Fera” (no original, voz do também saudoso Jerry Orbach) esconde o que as crianças não enxergam: um sedutor compulsivo, o que não deixa de ser engraçado e digno de elogios.
As crianças percebem sutilezas, de modo que não é nos detalhes visuais que se consegue diferenciar a percepção. E criança também não é tão ingênua como se crê, em geral, de modo que conotações de natureza sexual são percebidas por todos. Assim, achar o que um enxerga, e o outro não, é um exercício intelectual louvável. Algumas vitórias foram conseguidas. Vejamos alguns exemplos de filmes infantis em que diferentes idades percebem diferentes aspectos.
- Divertida Mente – de Pete Docter. Um filme engraçado, ideal para toda a família. Porém, mais de um psicólogo declarou que ali tem uma boa aula de emoções e comportamentos a ser “divertidamente” assistida.
- Napoleão e Samantha de Bernard McEveety. Com a então garotinha estreante Jodie Foster e um jovem Michael Douglas, esse filme também da Disney chocou ao se ver as intenções malignas de um doente mantendo a menina Samantha amarrada.
- Harry Potter. A série, dirigida pelo fraco Chris Columbus, que dirigiu os dois primeiros filmes da série e produziu os demais – o que ele sabe fazer com maestria – foi criticada por grupos religiosos radicais. O que os jovens vêm como magia, aventura e as desventuras dos primeiros romances de adolescência, os velhos se preocupam com assassinatos, tramas políticas e uma crítica ao poder absoluto.
Deliciosamente narrado, tanto as paixões juvenis como as conspirações são percebidas por todos, mas a importância desses muda com a idade.
- A Fantástica Fábrica de Chocolate. As duas versões sobre o belo conto de Roald Dahl, a de 1971, de Mel Stuart, com Gene Wilder e Roy Kinnear, e a de 2005, de Tim Burton, com Johnny Depp, FreddieHighmore, Helena Bonham Carter e Christopher Lee, possuem uma mesma mensagem, tão clara que soa gritante aos adultos: “Vejam como estão educando os seus filhos!”. Para as crianças, trata-se de um bom menino concorrendo, sem o saber, com um bando de crianças malcriadas e mimadas.
- Up – Altas Aventuras. Também de Peter Docter, com as vozes de Christopher Plummer, John Ratzenberger – que esteve em todos os longa-metragens da Pixar – e do próprio Peter Docter, está muito além de ser uma improvável e louca aventura de uma viagem feita com balões de gás. Quem tentou repetir, morreu na façanha! Trata-se da dor da perda, causando uma depressão profunda a um solitário idoso com a cara de Spencer Tracy que, no Brasil, foi maravilhosamente dublado por Chico Anysio. Essa dor seria superada por uma criança com suas próprias carências que, na sua ingenuidade, busca superá-las! Que bom que crianças não percebem o tamanho que essa dor alcança! Levou os Oscar de Melhor Animação e Melhor Trilha Sonora, e foi indicado para o de Melhor Roteiro Original.
- Wall-E. Mais um da Pixar, encerrando nossa resenha, com a direção de Andrew Stanton, com as vozes também de John Ratzenberger mais a de Sigourney Weaver, vai além de uma romântica aventura espacial entre robôs. Fala do apocalipse terreno, dos últimos sobreviventes humanos do planeta, a que condição foram elevados e da superação do gênero humano para a recuperação da Terra. Um enredo forte, sem dúvida, mas levado com uma maestria inigualável, sob as melodias de “Hello Dolly” e a bela “La Vie em Rose” na voz de Louis Armstrong. Venceu o Oscar de Melhor Animação e foi indicado por mais quatro, inclusive para o de Melhor Roteiro Original. Agradou a todos!
E, copiando Pernalonga, “Por enquanto é só, pessoal!”.