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As Chuvas e as Cidades no Brasil

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17/03/2016

Por: Fernando Cézar Macedo*

Com as chuvas de verão, algum articulista sempre menciona a crônica As Enchentes do brilhante escritor carioca Lima Barreto (1888-1922), publicada no jornal Correio da Noite, da antiga capital federal, em 19 de janeiro de 1915, portanto, há mais de um século. Seleciona-se aqui os parágrafos iniciais nos quais fica bem destacado o problema tratado pelo autor. “As chuvaradas de verão, quase todos os anos, causam no nosso Rio de Janeiro, inundações desastrosas. Além da suspensão total do tráfego, com uma prejudicial interrupção das comunicações entre os vários pontos da cidade, essas inundações causam desastres pessoais lamentáveis, muitas perdas de haveres e destruição de imóveis”.

Como tragédia ou como farsa, a história se repete, conforme vaticinou o alemão Karl Marx (1818-1883) em sua célebre obra O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte, em contexto bem distinto mas que se encaixa aqui perfeitamente. Afinal, neste último fim de semana do dia 12 de março, as fortes chuvas na capital fluminense voltaram a fazer estragos como nos tempos de Lima Barreto. As vítimas principais são, como de costume, aqueles em situações de vulnerabilidade e para quem a cidade não garante as condições necessárias para a reprodução decente de suas vidas. Morando em áreas de risco, parcela importante da população citadina – aquela de baixa renda - sofre pela insuficiente oferta de infraestruturas urbanas e sociais que poderiam lhe garantir segurança contra as intempéries e dar-lhes condição de vida digna para aproveitar os benefícios da vida na urbe. Mas não é isso que se verifica pelas opções realizada pelos gestores públicos de onde alocar os recursos de nossos impostos.

No entanto, como de hábito, a culpa por essas catástrofes recai sobre as forças da natureza, como fez questão de frisar o prefeito da cidade maravilhosa numa clara tentativa de desviar o foco do problema social para causas externas à sua alçada. Esquece, ou menciona de forma distorcida, que poucas cidades do país teve tanto investimento neste século XXI como a que ele administra. Investimentos direcionados, principalmente, para mega eventos globalizados: Jogos Pan Americanos de 2007, Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016. Mas entre a grandeza do espetáculo e o legado social deles, a opção sempre foi pelo primeiro. E isso nada tem de natural, mas decorre das prioridades de organização do espaço urbano e das opções pelo uso do dinheiro público. O que se observa historicamente é a destinação dos recursos públicos para partes selecionadas das cidades, sob uma variedade de formas (infraestrutura, projetos de revitalização, monumentos, shopping centers, etc.), beneficiando o capital incorporador (construtoras, incorporadoras, imobiliárias) e os donos dos terrenos. A cidade, lugar da diversidade, das expressões culturais múltiplas, do lazer e da organização da vida no mundo contemporâneo, definitivamente, não é para todos no nosso capitalismo subdesenvolvido.

Do outro lado da ponte aérea, na metrópole paulistana, o problema se deu na mesma semana porém em dias anteriores e com mais força. As chuvas, que ocorreram torrencialmente tanto na capital como no interior, deixaram pelo menos 21 mortos e centenas de desabrigados em dezenas de cidades do estado. A culpa, como de costume, foi imputada à natureza que é sempre a algoz, seja na abundância, seja na escassez. Foi assim quando em 2014 faltou água em São Paulo, porque o outro santo, o São Pedro, não mandava chuvas, segundo discurso oficial. Porém, não foi por culpa de qualquer santo que milhões de paulistanos pobres ficaram sem água, afinal a solução do tucanato bandeirante foi reduzir o abastecimento nos bairros de mais baixa renda garantindo aos demais o fornecimento. Aos de cima na estratificação social, tudo; aos de baixo, as mazelas urbanas. Simples assim!

Diversos estudos apontaram que a culpa pela escassez d'água não foi do santo pescador, mas da falta de investimentos do governo do Estado na ampliação de novos mananciais que pudessem abastecer o sistema Cantareira, o principal do estado. Difícil fazer tais investimentos depois da abertura do capital da SABESP, a companhia pública estadual de abastecimento, na bolsa de valores em 2000. A partir de então, a prioridade da empresa passou a ser a remuneração dos acionistas. Com isso, o papel de utilidade pública dos serviços de água e abastecimento se esvai; tornam-se secundários diante da criação de mais uma oportunidade adicional de negócios do capital financeirizado que se beneficia dos lucros da SABESP.

Agora, na abundância hídrica, também são os mais pobres as principais vítimas. Mesmo a impressa amiga, que sempre eleva a bola da “eficiente” e “austera” gestão do tucano mor de São Paulo, indica a falta de investimentos sociais de seu governo. Como apontado pelo jornal Folha de São Paulo “dos R$ 65 milhões previstos para reassentamento de moradores em áreas de risco e favelas nos últimos 5 anos, nenhum centavo foi gasto pela gestão do governador Geraldo Alckmin (PSDB)” (12/03/2016, p. B6). Se a essa austeridade fiscal às avessas considerarmos os gastos nos diversos órgãos do executivo estadual, veremos que a Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos teve apenas 53% dos investimentos previstos para o ano de 2015 realizados. Portanto, projetos importantes que poderiam amenizar os efeitos das chuvas deixaram de ser realizados. E mais uma vez, não adianta colocar a culpa em São Pedro que não é ordenador de despesas públicas no estado.

Os problemas urbanos não se restringem às grandes cidades, mas se espalham por todo Brasil e afligem nossa população faça chuva ou faça sol. Vila Velha (ES), por exemplo, iniciou o ano com a triste notícia de desabamento de pedras no morro da Boa Vista. Cidades do interior do país que crescem economicamente acima da média nacional — puxadas pelo agronegócio ou pela indústria extrativa mineral — apresentam os velhos problemas urbanos que costumamos ver (e criticar) nas metrópoles ou nas capitais estaduais. E a lista é grande: vai da ocupação de áreas de risco aos deficits de moradia e má qualidade dos transportes públicos.

A superação dos nossos problemas urbanos exige a superação do nosso subdesenvolvimento e, principalmente, do nosso capitalismo dependente que nada mais tem a oferecer, do ponto de vista civilizatório, à nossa população de mais baixa renda que hoje vive majoritariamente nas cidades brasileiras e delas usufrui muito pouco. 

* Doutor em Ciências Econômicas, Professor Livre Docente da UNICAMP.


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