Iniciei minha carreira profissional, de carteira assinada, como digitador no Banco do Brasil. Eu tinha passado no concurso, mas as vagas oferecidas eram para estados do Nordeste. Eu estava no último ano do meu curso de Física, o que me impedia esta aventura. Fui ficando na fila.
Formei-me e pararam de me chamar. A ansiedade foi a mil! Meses de silêncio depois... tudo acabou como um conto de fada: fui contratado para trabalhar a menos de 800 metros da minha casa. E um detalhe importante, que não foi evidenciado para mim até ouvir o “ Bem vindo,colega! ”: O meu posto era no turno da madrugada! Entrada à meia noite e meia!
Inevitável. Relaxar. Aproveitar. Foram três inesquecíveis anos. Rapidamente aprendemos a digitar com velocidade os cheques e faturas que vinham em intermináveis lotes. Quem atingia determinada produção, ganhava uma hora a menos de trabalho no próximo dia. Fiquei freguês desta promoção!
Nosso supervisor era o Guerra. Conhecia música profundamente e cultivava sua habilidade com instrumento de sopro. Na sua casa tinha um estúdio com acústica perfeita e equipamentos sofisticados. Foi lá que nos apresentou as longas peças de Mahler.
Na maioria éramos jovens universitários ou recém-formados. Conseguíamos digitar e conversar sobre temas diversos pela madrugada toda. Música, literatura, ciência, viagens.Esses eram os temas prediletos.
De três às três e meia era a hora da parada para o lanche. Para aproximar as pessoas e continuar a conversar e compartilhar as opiniões, instituímos o Clube do Chá. Caprichamos. Compramos canecas, chás importados e “contratamos” o Seu Mazinho para ser o nosso zelador. Na hora certa o chá estava pronto e no final ele cuidava de lavar tudo. Guardava os apetrechos no armário que a gerência nos deu exclusivamente para o Clube. O balcão no meio do corredor era a nossa ilha privativa. Faltava espaço para acolher nossa turma e tantos colegas de outros setores.
Conheci ali dois Maurícios. O Scerni e o Dottori. O Scerni é um fotógrafo de muita sensibilidade, com quem compartilhei o gosto pela estética. Ele cantava em coral. A minha família é muito musical, mas eu nunca tive paciência ou pendores para aprender a tocar instrumentos. Fiquei muito interessado em conhecer o trabalho do Coral Harmonia. Na primeira oportunidade fui à Sala Funarte ver uma apresentação. Solange Pinto Mendonça regia o grupo. Que sensibilidade na interpretação das partituras! Não me contive e, ao final do concerto, fui cumprimentar o colega e a regente. Ela conversava com um senhor. Pedi licença e a cumprimentei. Ao ouvir o meu timbre, ele pediu-me para cantar “Parabéns Pra Você”. Era Edino Krieger. Recomendou-me entrar para o naipe de baixos, sob a aprovação da regente. Fiz isso e fiquei por lá enquanto pude. No Clube do Chá tínhamos mais um assunto!
O Dottori estudava Geologia, clarinete e composição! Lia muito e compartilhávamos algumas ideias fora da caixa. Nossa conversa era contínua e constante nas madrugadas. Lemos e relemos Dom Quixote e Borges. Não tínhamos perfil para aquele trabalho burocrático. Nossa dupla se desfez, quando fui transferido para trabalhar no horário dos mortais em uma agência e, logo, após ele demitiu-se indo para a Europa estudar música. Minha história no BB ainda durou até 2002. Em Maio do ano passado recebi uma mensagem dele pelo Facebook: lembrava que há 31 anos não nos comunicávamos. Quanto tempo! Parecia que tinha sido ontem nossa última conversa!
Virtualmente fui percebendo sua atividade de professor de composição na Universidade Federal do Paraná. Finalmente, nesta semana tive a oportunidade de assistir à estreia de sua nova composição
(https://youtu.be/G_1fQIaerrA) na Sala Cecília Meirelles, interpretada pelo Quinteto Villa-Lobos, e de retomar os papos regados a um corretíssimo chope no vizinho Ernesto. Ao meu lado minha irmã Minie, que testemunhou as histórias daquelas Mil e Uma Noites da turma do Clube do Chá! Tantas histórias eu poderia registrar! Mas deixo neste domingo apenas uma degustação, pois ainda temos 1001 outras oportunidades de compartilhar nossas múltiplas experiências e de dar muitas sonoras gargalhadas com osMaurícios e quem mais chegar!
Assim, celebro a cada dia as marcas dos meus passos pelos caminhos quânticos e luminosos da vida com um brinde à amizade e aos caros amigos!