O meu amigo trotskista, Cláudio Abramo, ex-editor do Estado de S.Paulo e da Folha de São Paulo, estava obcecado para comprar um casaco de peles de chinchilla que custava 10 mil libras, e que seria vendido na Black Friday por 1.000 dólares. Era um casaco grosso e largo, marrom claro, com gola também castanho escuro, aparentemente de tamanho “grande”, destacando-se entre os demais produtos à venda. O monumental ornamento para proteção contra o frio londrino ficava exposto provocativamente na vitrine de uma boutique “elegantérrima” da New Bond Street , em plena zona central de Londres. Punho cerrado, voltado para cima, ele dizia baixinho: “Esse casaco é meu!”.
Moralista, quase um ambientalista, não resistiu,entretanto, à tentação. Contrariando os princípios que seguia, foi atingido mortalmente pelo raio da fantasia. Entrara naquela loja duas ou três vezes já para experimentar o casaco. Na passagem do Thursday para a Friday ele se instalou na porta da boutique, e não saiu. Virou a madrugada ali. Quando a loja abriu pela manhã, foi o primeiro a entrar e, ao fazê-lo, apossou-se logo do cassaco. Vestiu-o novamente, olhou-se no espelho e mandou empacotar.
- “Um embrulho para presente. Bem bonito!
Era para ele mesmo. Sacou um cheque, e orgulhosamente pagou-o à vista. Em seguida, caminhou pela Bond Street, quase posando, carregando ainda apenas a sacola da loja de grife que, por si só, já dava status diferenciado. Dali para a frente passou a usar sistematicamente o casaco. Entrava com ele pelo corredor do Foreign Press, e todos paravam para olhá-lo. Ninguém falava nada. Vestido com o casaco, o Cláudio, que já era alto, tornava-se duas vezes mais volumoso. Faltava-lhe apenas um colar de pérolas e um chapéu com um penacho para parecer um oficial da guarda real. Seu estado de ânimo mudara e o moral foi lá em cima. Sim, porque, meses antes, ele tinha sido destituído intempestivamente da editoria da Folha e, como compensação, designado pelo Frias para ser correspondente em Londres.
Só não me sentia humilhado porque, na convivência como ele, primeiro aprendi a admirá-lo como jornalista e, sobretudo, como colega. “Aquele japonês do Ministério das Minas e Energia – ministro Shigeki Ueki - me telefonou várias vezes pedindo para tirar você de lá”. Cláudio se interessava por política, eu por economia. Frequentava o Parlamento, eu as bolsas da City. Ambos tivemos convite para um chá no Palácio de Buckingham com um dos membros da família real. Eu declinei: por provincianismo mesmo; ele foi, e tomou café com a rainha-mãe, Margareth. Vez por outra trocávamos informações. Sua vocação para coisas finas e elegantes eram notórias, embora por aqui usasse um terno surrado.
Tinha amigos empresários, e até ministros que se hospedavam com ele em Londres. Era íntimo do Severo Gomes, ministro da Indústria e Comércio – que, de pijama, me deu uma entrevista no seu apartamento - e do Ulysses Guimarães, presidente do PMDB. Havia vantagens para ambos. Ele tinha uma fonte na mesa do café, e o informante credenciado um jornalista correspondente de um grande jornal para confidenciar o que gostaria de dizer, e escondia.
Mais por desinformação e menos por ideologia afeiçoei-me a ele, mas não curtia suas teorizações políticas e a maioria das veleidades. Apenas o acompanhava. Satisfazia-me com uma boa notícia de economia, que ele não tinha. E, assim trocávamos as tão criticadas figurinhas (notícias). Com o tempo absorvi dele algumas práticas e manias. Era de maior idade, por isso não poderia nunca criticar o Cláudio que, como chefe, foi meu protetor; como colega de correspondência um disciplinado preceptor. Terminei por usar também a Black Friday para comprar um blazer lindo que namorei, durante algum tempo, na vitrine de outra loja – essa na Oxford Street - à espera que o preço chegasse ao meu alcance na Friday seguinte. O Cláudio foi comigo à loja, e se divertiu: “Agora você parece um jornalista em estilo britânico”.
Em Londres caminhávamos. O metrô e o ônibus ficava em segundo plano. E assim vadiando pelas ruas, pelos pubs, descobríamos coisas fantásticas. Em livrarias e sebos encontrávamos obras raras por aqui, e até autógrafos de personalidades, como uma de Oscar Wilde no “The Picture of Dorian Gray” para um lorde de nome Alfred Douglas. Assim aprendemos como é sedutora aquela cidade, e como o Black Friday, como uma quebra de preceitos e preconceitos, destitui a todos da religiosidade, da moralidade cultural e até das ideologias.
*Jornalista, professor, doutor em História Cultural. Consultor da Catalytica Empreendimentos e Inovações Sociais