Naquela manhã acordou com a cabeça um pouco desordenada. Estava cansada de tanto barulho, poeira e confusão no apartamento. Deitava-se morta de cansaço de tanto limpar poeira pra conseguir dormir num quarto mais ou menos apresen-tável. O ventilador ligado por causa do calor fazia a poeira voar pelo ambiente deixando-a com a boca e garganta secas, com um pigarro incômodo. Dormia muito mal. Tomava tanta água durante o dia para hidratar a garganta, que em algumas noites precisou se levantar para ir ao banheiro. Era só o que faltava! Até a cachorrinha se sentia mal e engasgava com a poeira. Como está cega, não é conveniente deixá-la num hotelzinho, o jeito é aguentar uns dias. Uns dias? Duas semanas!!!!!
Pedreiros se movimentando pra lá e pra cá, material de construção no corredor e no espaço da garagem emprestada pelo vizinho j já que a sua vaga serviu para guardar o entulho atrás do carro, até ser levado para o setor de recolhimento da Regional. Linóleo no chão para proteger o sinteco, a cachorrinha deitada no sofá pra não levar tranco e pisadas o tempo todo e ela ali, sem poder sair, matando aula na Faculdade da Maturidade entupindo-se de poeira. Passava o dia lendo ou distraindo-se no computador onde comentava, via Face, a sua desdita. Já não aguentava mais. Aquilo não acabava nunca e era apenas a reforma de um banhei-ro, mas parecia uma construção de porte.
Não sabe por que decidiu que ia fazer o almoço depois de tantos dias com-prando comida no restaurante ali no outro quarteirão. Parece que a cabeça estava mesmo desnorteada Nem pensou duas vezes. Até esqueceu da sua incompatibi-lidade com o tal fogão, queria fazer um almoçinho bem simplesinho e examinou a geladeira: vazia! Só muitas garrafas de água, algumas frutas e mais nada. Não se apertou, avisou aos trabalhadores que ia sair um pouquinho e se mandou para o supermercado mais próximo a poucos quarteirões de distância. A filha ainda dormia pois chega tarde do trabalho e, por sorte, dorme feito pedra.
Fez rapidamente as poucas compras e entrou na fila do caixa de prioridade. Por sorte o supermercado naquela dia não estava muito movimentado. A fila era até pequena. Quando a pessoa que estava na sua frente ia ser atendida o sistema caiu e todos os caixas pararam o atendimento. Que azar! O jeito era esperar um pou-co. Só que o pouco virou muito para quem estava com pressa. Ela não se impor-tou, qualquer coisa era melhor do que voltar para a poeira. Ficou ali, firme sem arredar o pé. Algumas pessoas se aborreceram e saíram deixando as compras, outras reclamaram do tempo perdido querendo falar com o gerente e as moças dos caixas aguentando as reclamações.
De repente, voltou-se um pouco quando ouviu uma voz de homem lhe dizer:”Você não pode estar nesta fila, não tem direito porque ainda não tem idade para isso”. Ele estava sorrindo. Levou um susto, mas teve a presença de espírito para rir e responder: “Não tenho mesmo, faltam muitos, muitos anos para eu ter esse direito, mas só entrei aqui porque a fila estava pequena, quase não tinha nin-guém e tenho pressa”. Neste momento um casal de amigos que acabava de em-trar, se aproximou para cumprimentá-la e ela os informou da pane no sistema. Eles saíram e ela retornou ao seu lugar de onde havia se afastado um pouco. O caixa voltou a funcionar e enquanto a pessoa na sua frente era atendida, ela vol-tou-se para o homem que estava atrás e lhe disse rindo :” Mas o senhor também não deveria estar aqui. Ainda não tem idade para estar nesta fila”. Ele riu e repe-tiu o que ela havia dito: “Não tenho mesmo, só entrei aqui porque a fila estava pequena”.Os dois riram e a moça do caixa pediu que ela passasse as compras. Foi então que ela percebeu que o havia chamado de senhor. Que vergonha! Ela passou as compras, pagou e saiu. Nem lembrou de se despedir do homem.
Estava com as compras divididas em duas sacolas e enquanto subia a rua, pen-sou na besteira que havia feito. Que idiota tinha sido. Anda tão distraída que nem deu um tchau para o homem simpático, que lhe havia feito um galanteio.Em pou-cos minutos lembrou que ele era um coroa bem interessante, boa estatura, talvez um pouco acima do peso, sorriso bonito, cabelos branquinhos fartos não muito curtos, pele clara e sobretudo aquele sorriso simpático. Pensou que se tivesse sido mais agradável podiam ter conversado mais, porém foi chamá-lo de senhor! Que coisa mais idiota. O cara lhe fez um agrado dizendo que ela era não tinha idade para estar naquela fila e ela o chamou de senhor. Cortou o barato, como diziam na sua juventude. Sou mesmo uma idiota, pensou. Quem sabe aquele encontro podia ter rendido alguma coisa interessante, uma amizade, sei lá o quê.
Agora mesmo podiam estar subindo a rua juntos, conversando, quem sabe ele mora por perto ? Talvez ele more mais distante e passando por ali,lembrou de algo que a mulher necessitava, deixou o carro no estacionamento do supermer-cado e entrou...Não viu a mão dele. Será que usava aliança? Há tempos evita olhar as mãos de um homem. Quando jovem dizia que mão de homem lhe dava frisson. Não todas as mãos, não qualquer uma. Algumas especiais, não sabe explicar. Por isso agora acha melhor nem olhar.
Lembrou que estava com os cabelos horríveis, sem tintura, o branco da raíz aparecendo e ela o chamou de senhor! Vai ser idiota assim… Idiota, idiota! Pode ser que em vez de idiotice seja apenas timidez. Não tem mais idade para timidez, mas às vezes ainda se comporta assim. Há quem diga que o avançar da idade dei-xa as pessoas acima do bem e do mal e que elas podem tudo até ser inconveni-entes, tudo respaldado pela idade. Ela está caminhando nesta direção, algumas vezes pensa que está saidinha demais e se contém para não exagerar na dose. Quando isso ocorre, às vezes é inevitável, depois quase morre de vergonha.
Chegou em casa, enfrentou a poeira, foi fazer o almoço pensando que está tão desatualizada, tão afastada de assuntos sentimentais, com a cabeça tão desorde-nada, que se algum homem lhe fizer um elogio, ou lhe der uma cantada sutil, ela tem certeza de que não vai entender. Começou a rir sozinha.