Por: Orlando Eller*
Enfático, o repórter da tevê mostrava imagens de uma rua à beira-rio, inundada pela inusitada enchente. Ele dizia: “Aqui, o que era uma rua faz agora parte do leito do rio”. E passou então a descrever um lamentável quadro de inconformismo, perda e desolação humana.
A leitura que ele fez foi verdadeira; entretanto, superficial e sem alcance político por não abordar criticamente um fato tão antigo quanto este que a poucos tem sensibilizado e que, quase sempre, só recebe abordagem factual da imprensa em razão do imediatismo com que ela faz cotidianamente seu dever de casa.
Faltou ampliar o alcance da pauta para mostrar, com ênfase crítica, que aquele trecho da cidade tomado pela água da chuva pertence, na verdade, à calha do velho rio; que foi invadida com a aquiescência de quem deveria mostrar zelo com a ocupação do solo e seus espaços. O rio mais cheio voltou ao lugar que é seu. E o fará sempre, na medida da chuva que cair em sua bacia.
Notícias de enchentes são genericamente parecidas. Em todas há cenários, personagens e uma desgraça em curso, que acabará validando o tamanho da informação e sua freqüência nas mídias. Pouco ou nada se falará sobre o crime perpetrado contra o ambiente, de se permitir a ocupação de leitos de rios e beiras de mar como ato conveniente de quem, sob a mira da urna silenciosa, o avaliza dando-lhe esgotos, meios-fios e calçamento.
Assim começa uma rosca sem fim. Como a da Bugia, em Conceição da Barra, que consumiu muitos milhões de dinheiros. Acuadas pelos posseiros, as autoridades que ali se sucederam nos últimos decênios continuam desafiando o mar que já deu mostras suficientes de que jamais será amansado em razão de terem ocupado um espaço que ora é seu ora é do rio Cricaré.
Um dia, na Vale, recebi um prefeito de Conceição da Barra, desejoso que estava por receber ajuda financeira destinada a soterrar a Bugia com outras milhares de toneladas de pedras para, deste modo, eliminar de vez a manhosa insistência das ondas. Garanti-lhe que encaminharia seu pedido à instância superior, mas com a ressalva de que, se a decisão de liberar recursos fosse minha, só ajudaria se, bem ao contrário, seu projeto estivesse tratando de remover o pedaço da cidade ali fincado às avessas.
A lição da Bugia e sua circunvizinhança continuará como ladainha de missa antiga até que algum governo iluminado, comprometido com o equilíbrio entre o interesse público e a natureza, ponha fim ao domínio predatório há tantos anos desta maneira exercido não só lá mas em outros beirais de nosso mar agitado.
A natureza dá tudo, quase de graça. E, como Deus, é longânima em se vingar dos que se atrevem a se pôr em seu caminho. Séculos a fio vem suportando submissa desafios e mazelas de todos nós, que não fomos seus depositários fiéis nem seus administradores conscientes. E agora, de modo implacável, promete revide, que se traduz em aumento de temperatura, degelo e falta de água, como áspides que espalha em nosso caminho por não suportar mais tanta gente tão humanamente nociva ao seu meio.
Essa reação da natureza me deixa feliz. Ela me concede a chance de revisar a minha atitude, os meus conceitos e o meu modo às vezes tão predatório de utilizar seus recursos, cada vez mais raros e finitos. Que assim também se revise o papel do jornalista e de sua mídia que, ao divulgarem tragédias da natureza, não se atenham à compreensão quase sempre equivocada de que o ser humano é a vítima e nunca o vetor delas.
A consideração que ora faço me lembra Colatina, que entulhou parte da calha do rio Doce com um gigantesco monte de pedras. Não importam as razões. Por que preferiu fazê-lo dentro do manancial já amargo se a hinterlândia desocupada emite sinais claros de que precisa de socorro ambiental?
Excêntrica loucura essa que com certeza não há de resistir à meia enchente, considerado o tamanho daquela de trinta e tantos anos atrás, que despejou águas barrentas por cima da velha ponte, invadiu ruas e casas e expulsou a maioria dos seus moradores. Quem se lembra?
Quantas besteiras fizeram e fazem (com a nossa permissão!) tantos gestores que, eleitos, acenam com zelo público que raramente leva em conta a vontade da natureza. A cada chuva severa, sempre tão bem-vinda em nossas lavouras, a enxurrada dissolve os barracos e inunda e soterra os baixios. Ao que se percebe, ainda é mero sonho eleger administração pública ciente de que os instrumentos de sobrevivência humana devem caminhar na direção da sustentabilidade do meio ambiente.
Às vezes tudo parece se assemelhar ao despreocupado devaneio de Pompeia. Que acabou soterrada para sempre sob uma enxurrada de lavas do Vesúvio.
* Orlando Eller é jornalista. Iniciou sua carreira em 1968, no jornal Correio do Povo (Porto Alegre). Em 1974 retorna ao Espírito Santo e, no mesmo ano, ingressa como repórter de A Gazeta, onde foi também redator, editor de Economia por nove anos e de Cadernos Especiais por oito anos. Em 1987 foi convidado para ser assessor de Comunicação da Vale. Atualmente é coordenador da Assessoria de Comunicação do Tribunal de Contas do Estado.E-mail:orlandoeller@hptmail.com