Por: Dilermando Teodoro (Fazenda Santa Fé do Mutum – fevereiro de 2017 – Ariquemes-Roraima).
De quando em vez, fico proseando comigo mesmo, tirando a tampa do “Caldeirão, remexendo fundas minhas lembranças”, atiçando e avivando as labaredas do braseiro de minhas recordações, já meio apagadas, afloram-se em meu subconsciente fragmentos de minhas amareladas e carcomidas memórias, que o tempo insiste em apagar, de “Menino Bicho do Mato”, resolvo então exorcizar através de toscos e prolixos relatos intrigantes acontecimentos vivenciada na infância...
Provavelmente, ocorrido entre cinco e sete anos de idade, meus saudosos pais resolveram visitar meus avós Manoel e Carolina, moradores na Mata Fria. Como não havia estradas em condições de trafegabilidade de veículos pelas serras do Alto Dourado para chegar ao planalto da Mata Fria, onde residiam, a viagem foi pelos distritos de São Sebastião da Vala – “Rosca Seca” e Barra Alegra, hoje, Alto Capim (MG), respectivamente, alcançando o planalto pela recém inaugurada, Serra de São Jerônimo. Viagem esta, realizada abordo de nosso possante caminhão “GMC-450”, tendo ainda a companhia de mais alguns convidados, posto que era uma comemoração festiva dos patriarcas da Família Teodoro.
Na época, final da década de 1950, meu pai, correligionário político dos irmãos Cipriano – Secundino – Cel. Bim Bim, Amercino e Acendino, então pertencente à agremiação política PSD e, conhecendo-se desde a juventude, pois foram criados em regiões próximas, relacionavam-se cordialmente. Aproveitando a oportunidade, ao passar próximo sua fazenda, resolveu fazer uma rápida visita ao Cel. Bim Bim, antes de prosseguir viagem. Recebido com muita cordialidade pelos anfitriões, senhor e senhora Cipriano, meus pais e convidados foram convencidos a ficarem para o almoço Enquanto aguardávamos extasiados percorremos as redondezas da fazenda onde havia um mine zoológico com animais da flora e fauna da mata Atlântica e uma enorme coleção de pássaros em gaiolas, papagaios das mais diversas cores e matizes, maravilhados, enchiam meus olhos com tanta beleza de cores e cantos. Exausto, resolvi retornar onde estava meu pai que continuava prosear com o anfitrião, ali permaneci calado, menino, jamais se intrometia em conversas de adulto, seja lá por que motivo fosse, nem pensar...
Em um dado momento, o Cel. Convidou meu pai a acompanhá-lo a uma pequena sala ao lado. Acompanhei, lá chegando, apanhou uma pequena caixa de madeira, que mais parecia uma daqueles antigos estojos de madeira, onde guardávamos nossas canetas e lápis escolares, com tampa deslizante. Curioso, agucei minha atenção! Entregando a meu pai, solicitou que a abrisse. E, ao abri-la meu pai levou um tremendo susto, dando um grito de pavor, deixando-a cair sobre a mesa, ao abri-la, uma perfeita cobrinha coral, de cera, saiu como se fosse picá-lo. Também, me assustei, afinal morria de medo de cobras. Riram-se as gargalhadas escancaradas, tornou abri-la para verificar como funcionava o mecanismo. Enquanto isto eu continuava assustadíssimo, tremendo de medo e susto, meio cabreiro achando que era verdadeira tamanha a perfeição, mas como sempre, não questionei, muito menos perguntei que “diabos” de trem doido era aquele. Um horror aos olhos de uma criança! Esta imagem e o susto permanecem “tatuados” no fundo de meu subconsciente e, de quando em vez, como hoje, afloram em minhas lembranças de “menino Bicho do Mato”...
Continuaram a prosear, mas meu susto foi tão grande que não prestava atenção em mais nada, a não ser na maldita caixinha de madeira, que permanecia sobre a mesa. Depois de algum tempo, virou-se apanhou em um armário, um grande vidro de boca larga, transparente, de grossas parede, tampa também de vidro, daqueles usado nos antigos armazém para acondicionar remédios e especiarias ou em casa para doces e compotas. Estava quase cheio de um liquido transparente e, de inicio pensei em se tratar de doces. Minha curiosidade dividiu-se entre os dois objetos! Algo chamou minha atenção, por serem peças disformes, de tamanhos, texturas e cores diferentes, imerso em liquido transparente que não consegui identificar do que se tratava. Não ousei perguntar o que era? Meu pai pegou o vidro com as duas mão elevou até a altura dos olhos, virou o vidro em circulo, não lembro se comentou algo, colocando-o novamente sobre a mesa, continuava assustadíssimo com a história da cobra da caixinha de madeira e, agora também, em tentar descobrir o que era aquilo. Exatamente em função do susto, estas duas imagens ficaram arraigadas em minhas lembranças em seus mínimos detalhes e, principalmente o estranho conteúdo do vidro de boca larga.
Transcorreram-se anos, sempre que o nome do Coronel Bim Bim era mencionado, a primeira lembrança que vinha a minha cabeça; a caixinha de madeira com a cobrinha de cera e o tal vidro de boca larga, de conteúdo indefinido, aguçando minha curiosidade reprimida de menino “Bicho do Mato”. Certa vez, já adolescente, um conhecido de meu pai em conversa, deu-lhe a noticia de seu parente que havia se mudado para o “Norte” assim era chamado a região do “Contestado” entre Minas Gerais e Espírito Santo – Cidade de Mantena e adjacências. Contou que o mesmo havia sido assassinado por desconhecidos em tocaia, que teve a orelha esquerda decepada, tudo indicava o assassino a lavou. Meu pai comentou que muito provavelmente aquele assassinato teria sido a mando e ordem do Coronel Bim Bim, afinal a vitima teria migrado em decorrência de desavenças na região em que residia. Na época corria a “boca pequena”, e era de conhecimento de todos, a “lenda” que quando encomendava um assassinato em regiões distantes e pra ter a certeza de que o serviço seria efetuado pelo pistoleiro contratado, exigia que lhe trouxessem a orelhas do desafeto. Mais uma vez, incontinentemente, volta em minha mente, as lembranças da visita a fazenda Alto Capim!
Nós, da geração “Baby Boomers”, na infância e adolescência, fomos educados a sermos cegamente obedientes aos pais muito mais por medo, do que por respeito. Jamais questionar, perguntar, contestar, abordar sobre qual quer assunto, que imaginássemos serem proibidos, por isso nunca perguntei sobre o conteúdo do vidro de boca larga, no entanto, com os fragmentos das informações colhidas até então, tinha quase a certeza que o conteúdo era sim, de orelhas humanas que havia visto naquele maldito vidro de boca larga.
Com o passar dos anos, na fase adulta é que passamos a respeitá-los, admira-los, amá-los e, principalmente gostar de ficar por horas a fio, conversando, trocando experiências, relembrando histórias e causos, pelo menos foi isto que aconteceu comigo. Foi numa destas gostosas conversas que tivemos, onde falávamos de tudo, recordando de maneira prazerosa, até situações que na época nos tenha causado alguns sofrimentos, com se fossem um acerto de contas com o passado, da infância e juventude, foi que surgiu o nome do Cel. Bim Bim e, como sempre voltaram às lembranças da caixinha de madeira, a cobrinha de cera, o vidro de boca larga e seu conteúdo misterioso. Questionei sobre o conteúdo do vidro, se eram orelhas humanas? Desconversou, disse que não se lembrava do ocorrido, falei então do enorme susto que teve, com a cobrinha que quase o picou, não havia como não lembrar. Não, é que não se lembrava de que estivesse presenciada a cena, afinal já transcorreram tantos anos e muitas coisas já se apagaram de suas lembranças. Olhou-me fixamente por alguns instantes, como querendo dizer que não gostaria que tivesse presenciado aquela macabra sena e, finalmente balançou a cabeça afirmativamente, sim o conteúdo eram orelhas humanas, de pessoas as quais o Cel. Bim Bim mandara eliminar, trazida como prova. Comentou ainda, que citou nomes de pessoas as quais pertenciam aquelas orelhas que ali estavam. Orgulhosamente colecionava aquele “macabro troféu” conservando-as em formol no referido vidro de boca larga, que havia visto na infância, agora sim, tinha certeza absoluta, do que tinha visto naquela sinistra sala, que atormentou a minha curiosidade infantil por tantos anos, eram sim, orelhas humanas, de corpos profanados e vilipendiados por sanguinários pistoleiros de aluguel.
No final do século dezenove e inicio do século vinte, o “Brasil Rural” era dominado pelos coronéis sanguinários, apoiado pela classe política, que deles dependiam para perdurarem “ad eternum” no poder, tolerando e fazendo vista grossa para suas atrocidades. Secundino Cipriano, homem simples e semi-analfabeto, foi elevado a condição de “Coronel” transformando-se no lendário Coronel Bim Bim, pelas suas sanguinária atrocidade cometidas contra quem ousasse, contestá-lo, desrespeitá-lo ou, até mesmo ignorá-lo, tudo sobre o olhar complacente da Justiça, que na época era amplamente dominada pelos políticos, que dele dependia para permanecer na política – uma perfeita simbiose. Políticos mineiros e capixabas, que tinham seus currais eleitorais no “Vale do Rio Doce” mineiro e capixaba, chegaram ao cumulo de se cotizarem e, lhe presentear com um pequeno avião monomotor – Teco teco, em uma época em que ver de perto uma aeronave já era um tremendo feito. Coronel Bim Bim, tinha sim, um campo de pouso em sua Fazenda Alto Capim, construído com toscas ferramentas – enxadas, pás e enxadões, sou testemunho vivo disto. Amado, idolatrado, respeitado, temido por muitos, mas também odiado, em surdina é claro por outros tantos. Fazia acontecer em uma grande região do belo vale do Rio Doce, elegia e desbancava quem quisesse, elegeu-se prefeito de Aimorés quase que por unanimidade. Morreu em 1964, conseqüência de um fulminante infarto, em viagem entre Aimorés e sua Fazenda Alto Capim...