Continuamos todos atônitos tomando ciência cotidianamente, através da imprensa e, sobretudo, das redes sociais, dos inúmeros desvios reinantes na sociedade brasileira: desvios de conduta, desvios morais, desvios éticos, desvios de verbas e desvios de caráter, entre outros.
Nelson Rodrigues, sempre muito atual, eternizou a figura do canalha, do cafajeste, do cínico, tão cotidianamente presente na história contemporânea de nosso país; para ele, este seria o brasileiro típico das classes abastadas e uma das referências formadoras do caráter de nosso povo. Será verdade? Sua experiência jornalística teve importância fundamental na escolha de temas sensacionalistas que, acrescidos de lirismo, ganharam força e qualidade literária. Quando vemos hoje, por exemplo, os presidentes de nosso Congresso Nacional falando, vociferando e agindo temos a certeza de que Nelson acertou na mosca.
Há algum tempo atrás tivemos delegados indiciados pela ousadia em incriminar diversos personagens relevantes da economia e da política brasileira. O juiz-mor, chamado de Gilmar Dantas ou de João Plenário pela semelhança física e comportamental, aquele que “está destruindo a Justiça desse país”, saiu imediatamente em defesa dos tais personagens deixando a todos atônitos com a inversão de valores. Enquanto defende com unhas e dentes os suspeitos de colarinho branco, criminaliza ostensivamente os movimentos sociais legítimos. O Congresso, por sua vez, virou alvo de todo tipo de chacota pela sucessão ininterrupta de escândalos que brotam todos os dias oriundos de todas as fontes. O cinismo e a bizarrice moral parecem ser então as tônicas dos vários esclarecimentos e declarações dadas pelos envolvidos.
O ar de naturalidade com que muitas pessoas encaram tais anomalias e desvios faz que nos acostumemos com comportamentos sórdidos e cenas cotidianas torpes. Inclusive em nossa própria esfera de relacionamento. Passamos muitas vezes a achar normal que alguém de nosso círculo aja de modo indigno e vil, expresse toda a sua mesquinhez de espírito e se oriente pela máxima do vale tudo por dinheiro. Nesse sentido e pela complexidade da questão seria importante refletirmos sobre o que impulsiona as pessoas a agirem desse modo. Sobretudo nos dias atuais onde atitudes repletas de ódio, agressividade e preconceito nos fazem pensar em algum surto ou delírio coletivo. Hoje muitos psicopatas fazem uso das redes sociais para destilar seu ódio e sua aversão aos valores básicos da civilização.
Dias atrás vi na TV imagens de uma favela, composta por barracos que mais pareciam restos e entulhos amontoados, atingida por uma enchente. O prefeito local declarou então estado de calamidade pública. Por que só nesse momento? Por que não antes? Já não era uma calamidade pública milhares de pessoas viverem naquelas condições abjetas? Há alguma hipocrisia nisso? De quem?
Muitos dos temas abordados por Nelson Rodrigues continuam fazendo parte do universo de referências político-sociais de todo brasileiro: a moral hipócrita, o descalabro na vida pública, a falta de solidariedade, a predisposição à corrupção e as obsessões mesquinhas, sem falar na criminalidade generalizada e nas tragédias farsescas desencadeadas pelo instinto sexual reprimido. Que essa realidade pestilenta, no sentido rodrigueano, não nos faça sucumbir ao pessimismo crônico.
Os desmandos, descalabros e desvios nossos de cada dia devem na realidade nos impulsionar a todos a buscar formas de contribuir ainda mais para o equilíbrio das relações sociais e para a construção de uma sociedade onde o respeito, a honestidade e a ética sejam valores praticados pela grande maioria da população. Portando, mãos à obra!