“Se eu abrir a boca, metade da República cairá“ . Este era Paulo Roberto Costa, ex-diretor comercial da Petrobras, na sua prévia sobre o que viria a ser a Operação Lava Jato. Indignado com a ameaça, um amigo jornalista defendeu os governantes brasileiros, escrevendo: “Antes, os neoliberais de Washington usavam os militares para vencer a democracia; agora, lançam mão dos burocratas antinacionalistas...” Intrigado com o seu viés interpretativo, recorri a LordActon (1834-1902) que, há trezentos anos, pedagogicamente, assinalara que, independentemente das ideologias, “Todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Dizia ainda que “quando se tem uma concentração de poder em poucas mãos, freqüentemente aqueles que detêm o controle são homens com mentalidade de gangsters”
Pelo o que se pode depreender, o que está acontecendo no Brasil não se trata de um embate ideológico entre nacionalistas e seus opostos. O darwinista Spencer (1820-1903) explicava que “A sociedade é constituída por organismos sociais sujeitos à sobrevivência dos mais aptos”. Nada disso, contestou Marx (1818-1883): “A sociedade é formada por classes permanentemente em luta”. Essa discussão induz as pessoas mais informadas a retomar idéias que atravessaram séculos para dar uma configuração ao processo civilizatório. De uma maneira geral, as lutas políticas sempre ignoraram as advertências, aparentemente simplórias, de John Locke (1632-1704), um dos precursores do Contrato Social, de que “A sociedade é natural e, portanto, é melhor deixá-la em paz...”.
Sarney, quando presidente da República orientava seu ministério a observar as tendências das ruas, chamada de “Opinião Pública”. Era perigoso amparar-se apenas nos políticos para assegurar a governabilidade, desprezando o movimento pendular das ruas . A Revolução francesa mostrou claramente isso. Deputados, senadores, empresários ou lideres sindicais são sempre parte das crises políticas. As denúncias de Paulo Roberto e até de Jefferson, na Operação Mensalão, confirmam também a hipótese.
Próxima de um conto da carochinha, a crise brasileira dá a impressão de caminhar no sentido da natureza das coisas. Não apenas Locke, mas Foucault falou também muito sobre isso. Domingo (13) foi o dia das manifestações de rua pelo impeachment da presidente Dilma, de Eduardo Cunha (quiçá também de Temer e Renan). A quantidade maior ou menor de gente nas manifestações de rua, não significa exatamente uma mudança de opinião sobre os acontecimentos potenciais, mas uma introspecção das indignações pessoais que recolheram os flaps sem, entretanto, perder o fio da meada. Acredite nisso. É como um grito preso na garganta. Mobilizada contra a estagnação e a corrupção, que, sabe, permanecerão, a “ maioria silenciosa”, move-se lentamente como um polvo, coadjuvante da exigência por mudanças profundas na estrutura do Estado e do governo. São as externalidades imprevisíveis que, certamente, afetam um projeto de "governo longo", articulado nos subterrâneos da política.
Quando se fala em rupturas, pensa-se logo em revolução imaginando-se uma ação armada. Ora, lá no início, o meu amigo jornalista está dando uma outra versão, ao denunciar a burocracia de Estado. Tem sentido? Não sei. Aviltada pelo aparelhamento do Estado, não é impossível que a burocracia de Estado esteja reagindo silenciosamente aos objetos estranhos que se movem dentro do Aparelho de Estado, minando as bases do que Rabelais (1494-1553) chamou de “O gigante Pantagruel” (1532), filho Gargântua" , cuja mãe morre durante o parto, e que, insaciável, deseja engolir por dentro toda a sua própria estrutura. “Sua força é superada apenas pelo seu apetite”, diz Rabelais. As artimanhas contra os impeachments e as cassações de mandato também encontram explicações pedagógicas nos escritos grotescos do francês, que estabeleceu uma relação de Pantagruel com um demônio bretão, cuja atividade preferida era jogar sal na boca dos bêbados adormecidos, para lhes causar sede e fazê-los beber ainda mais. O Estado, destinado a representar a Nação, a regular o espaço social para torná-lo homogêneo, as teorias que surgiram em torno dele e o "uso do cachimbo" tornaram o Estado, no Brasil, cada vez mais particular, numa forma superior de alienação na sociedade contemporânea, transformado-o num locus da divisão social de que fala Marx, mas também do “gangsterismo”, lembrado por LordActon.
Existem poucas versões com credibilidade maior de que aquela equação de que a crise política brasileira passa pela a saída da presidente Dilma. Mas primeiro é preciso expurgar Cunha do Poder. Com ele na Presidência da Câmara, substituto constitucional do presidente da República e do vice, no seus afastamentos, o impeachment ou a renúncia de Dilma (e Temer) é quase impossível. Se a queda de Dilma passa por uma operação casada com a de Cunha, caindo Cunha, Dilma cai também. Mas, como já não se acredita em nada, nem em ninguém, tantas são as mentiras, desponta ainda uma possibilidade, não desprezível, de que tudo fique como antes na terra de Abrantes, esperando pelas eleições de 2018. Mas, acordem, ouçam a sabedoria de Locke: deixem a sociedade em paz.
Jornalista e professor. Doutor em História Cultural