De férias em Recife, assisti os lixeiros trabalhando no dia de Natal e de Ano Novo também. Todos sujavam, eles limpavam. Ninguém parecia importar-se com os lixeiros e nem eles com os demais. Lembrei-me de uma greve da categoria em Nova York que, ao atingir o décimo dia, levou a população a iniciar uma fuga para fora da cidade, assustada com a possibilidade de uma epidemia. Na capital pernambucana, vendo os lixeiros trabalhar árdua e alegremente, num dia em que todos se banqueteavam, senti-me provocado a refletir sobre o fato de que, ao contrário daquela alegria, o País entrará 2016 com 1,5 milhão de demitidos e 8 milhões `a procura de emprego. Nem todos têm consciência do ônus que isso representará para a economia e para a sociedade.
Em solidariedade a esses milhares de trabalhadores a jornalista Ana Maria Braga usou, num artigo , a expressão “Pé na bunda” para contar a desagradável experiência de demitida. Não é fácil, concluiu. Por mais rústica que seja a metáfora, somos obrigados a admitir que ela contém paradoxalmente um caráter pedagógico que não deveria ser desdenhado. A perda do emprego, e não o literalmente “pé na bunda”, deve ser encarada como um novo desafio diante do desconhecido e até de si mesmo. Pode funcionar como método para ajudar a tirar milhares de demitidos da “zona de conforto” e até gerar riquezas.
O “pé na bunda” é uma oportunidade de renovação , para fazer novos amigos e para redescobrir qualidades individuais incubadas. No fundo, ele funciona como a superação de uma etapa de vida e o início de outra. Parece ser tão sofrido para o trabalhador como para o empregador, parceiros na proteção do emprego e na preservação das empresas. São orgânicos. Nesse tipo de relação a luta de classes é quase uma abstração, e a intervenção do Estado um complicador. As empresas do Governo, movidas a projetos, renovam suas propostas todo ano e, consequentemente, parte do pessoal. As empresas privadas operam visando lucros, que são os condutores dos reinvestimentos destinados a mantê-las tecnologicamente atualizadas e competitivas. São condicionantes que exigem mudanças constantes, tanto na força do trabalho quanto naintelligenza.É a reprodução do capital, sim, mas isso não é um mal em si, senão uma necessidade para impedir o obsoletismo dos processos, os desgastes dos equipamentos e a desatualização da força de trabalho.
A maioria dos demitidos falta compreensão sobre o funcionamento da sociedade, a responsabilidade social da empresa e o papel do trabalho, visto, em geral, como um encargo, e não como um privilégio.Por isso torna-se presa fácil da demagogia política. Se voltarmos à natureza das coisas, vamos observar que os ensinamentos bíblicos são muito mais claros e rígidos, quando dizem que “[...} com o suor do teu rosto comerás o pão de cada dia .” Para isso foi dado ao homem três plataformas de sobrevivência, chamadas fatores de produção: capital, terra e trabalho. Cada um desses fatores apresenta existência distinta, funções exclusivas,porém complementares entre si, organicidade que cabe à iniciativa empreendedora. A destruição da empresa destrói também os empregos. A produtividade e a qualidade não parecem ser movidas exatamente por salários maiores ou menores.
A agressividade da expressão “pé na bunda” é aparentemente injuriosa porque remeteria o sujeito ao limbo, como se pretendesse subjugá-lo moralmente. Na realidade, liberta-o da sensação da nostalgia das rotinas do próprio trabalho, inibidoras da criatividade individual. A maioria dos trabalhadores anseiam por mudar de trabalho, mas covardemente tem medo de perder o emprego, o que resulta numa enorme falta de confiança em si mesmo e até numa contagiante e permanente infelicidade. A demissão é um instrumento natural que regula as relações de trabalho, e nela estão implícitas todas essas variáveis da psicologia do trabalho, dos direitos e obrigações do homem, induzindo-o subliminarmente à valores previdenciários. Assim, o “pé na bunda” está mais próximo de uma pobreza vocabular e do embrutecimento das relações entre as pessoas comuns, que das normas de trabalho. Seu caráter pedagógico, não dado previamente, é quase indiscutível . Ele convoca o sujeito a um maior nível de percepção sobre a importância do trabalho, oferecendo ao indivíduo a oportunidade de participar alegremente desse mundo. Um viva, portanto, para os lixeiros de Recife .
*Jornalista, professor. Doutor em História Cultural