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Uma Pessoa Especial

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25/01/2016

Por: Nancy Araújo de Souza

Muitas pessoas que marcaram nossa infância caminham conosco pela vida  a fora. Às vezes ficam esquecidas, guardadas por muito tempo, num cantinho da memória e ,um dia, surgem sem mais nem menos em nossa lembrança. Dias cinzentos são propícios para recordações da infância, sobretudo para aquelas boas recordações.

Aí o melhor é deixar que aflorem com força para nos alegrar e  assim espantar as dificuldades do presente. Pra que pensar na inflação, na violência, no dinheiro que acaba antes do mês terminar, na instabilidade econômica e política do país que derruba a expansão da economia mundial, no mais honesto dos seres deste planeta que pode ser denunciado por ocultação de patrimônio?

Sem tirar os pés do chão, existem coisas mais agradáveis em que pensar, por exemplo em alguém que, hoje, assim que acordei me veio à lembrança e me levou de volta à mais tenra infância:o Doutor.

Para falar do Doutor, preciso recorrer à história da família. Na primeira década do século passado, quando a família se mudou para a região do Contestado, ainda Espírito Santo, abandonando as fazendas de café para se tornarem pecuaristas, meu avô estabeleceu-se com a família no povoado e  seu sobrado, na praça principal foi o lugar de pouso dos tropeiros, ele inclusive sendo dono de tropas. 

Aos poucos, o casarão tornou-se  hotel enquanto minha avó teve saúde para orientar as empregadas. Quando o hotel foi desativado, um hóspede especial continuou fazendo suas refeições com a família por toda a vida, mesmo já tendo adquirido uma casa onde tinha o consultório em frente à Igreja matriz: era o Doutor.
 
Não sei exatamente como o baiano recém-formado surgiu no povoado, e foi hospedar-se ali. Lembro-me dele na casa dos avós onde era tratado com a reverência que os antigos dedicavam aos doutores, com respeito, e sem muita intimidade. Na cidade correm histórias engraçadas e nem sempre reais sobre o Doutor. Ele nunca se casou, nem se soube que tivesse caso com mulheres ou homens do lugar. 

Era uma figura bizarra, no modo de se vestir, era único. Na cidadezinha onde os homens de maior destaque usavam ternos de linho ou de brim cáqui, como meu avô, sempre muito discretos, as roupas do Doutor despertavam a atenção pois eram ternos verdes, amarelos, azuis com camisas vermelhas, e outras cores bem fortes, gravatas coloridas e  sapatos bicolores, que ele trazia de sua viagem anual. 

Em cidades pequenas onde a fofoca corre solta, ali  ninguém ousava denegrir a imagem do Dr. que era excelente médico, mas tinha alguns caprichos, é verdade. Não gostava de fazer partos nem de atender à noite, na  zona rural, então, impossível... Era muito medroso e tinha pavor de tempestades.

Todas as manhãs, ele saía de casa de pijama, dizem que ia banhar-se no rio, o que não acredito, com a toalha de rosto no pescoço chegava à casa dos meus avós e ali já encontrava a água quente para fazer a barba no lavatório da varanda ao lado da sala de jantar. Feito isso, sentava-se à mesa, na cabeceira, honraria que me avô sempre lhe concedeu, com as pessoas que estivessem na casa muito movimentada. 

Estava sempre cantarolando, solfejando alguma canção muito baixinho. Isso irritava um pouco meu avô que nada falava, em respeito ao Doutor. Ali se falava muito pouco às refeições, só o essencial. Após o desjejum, ele ia para casa e, se estava sem a bengala ou o guarda-chuva, costumava estender a mão, braço esticado à frente e fazer brilhar ao sol os anéis que usava em vários dedos. Saía para atender aos chamados, ou permanecia no consultório, uma construção pequena ao lado da casa. Na hora do almoço voltava ao sobrado dos avós. Nunca se atrasava, meu avô era rígido com os horários.

À tardinha, por volta das seis, a mesa era posta para a sopa e o Doutor. lá estava com a família, à cabeceira da mesa. Finda a refeição, os avós se dirigiam à sala onde meu avô pegava duas cadeiras de palhinha e as colocava na calçada onde se sentavam para conversar com os amigos e parentes que chegavam. O Doutor permanecia na sala de jantar, sentava-se numa cadeira ao lado da mesinha onde estava o rádio e ouvia a Voz do Brasil; depois ia também para a calçada conversar um pouco e se retirava cedo, andando calmamente com sua bengala de castão prateado, num lugar onde ninguém usava bengala. 

Na época de chuva, ou nos dias de sol escaldante a bengala era substituída por um guarda-chuva azul-turquesa  muito chamativo. Nas tempestades, ficava lendo na sala  perto do lampião, - a cidade ficava às escuras - até diminuir a chuva e ter coragem de sair. Não sei se alguma vez ele ficou para dormir na casa dos avós, deve ter ficado.

O Doutor não tinha vida social que se soubesse, a não ser o contato bastante formal com poucos amigos, com os quais não falava nunca de política, não tomava partido, num lugar onde a população se dividia entre PSD  e UDN.    Manteve um prazer do qual nunca abriu mão: anualmente viajava antes do Natal para sua terra e só retornava depois do carnaval.

Com exceção dos avós, nunca nos consultamos com ele, pois tínhamos  nosso vizinho de frente por muitos anos, amigo e médico disponível a qualquer hora. Disponível, mesmo!   

Uma história interessante, entre tantas, que contam sobre ele  era sua preocupação com os rapazes que frequentavam a Cortiça, rua “daquelas mulheres” e o procuravam para resolver os problemas que adquiriam ali. Deve ser mentira, mas dizem as más línguas que ele aconselhava os rapazes a procurarem mulheres casadas que eram cuidadosas e não ofereciam riscos. Muito à frente do seu tempo aquele Doutor...

Quando os antigos amigos já haviam morrido, meu avô foi o último, o Doutor  juntou os pertences, vendeu a casa, o consultório e voltou para sua cidade Santo Amaro da Purificação na Bahia, famosa por seus filhos ilustres. Eu já morava em Belo Horizonte e  nunca mais ouvi falar do Doutor Bião, mas ele, como tantas outras figuras da infância, de vez em quando voltam à minha vida trazendo lembranças de dias muito felizes. “A gente sai do interior, mas o interior não sai da gente.” Ainda bem.

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